Felício Pontes Jr.
(artigo publicado pelo site Globo Natureza em 15/04/11)
A “licença parcial” dada pelo Ibama para instalação dos canteiros de obras da hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, foi inventada, não está prevista na legislação. Ela é mais um capítulo de uma tragédia de erros sem fim, em cartaz há mais de dez anos. Para implementar o projeto, o governo federal vem ignorando as leis e pesquisas sobre a viabilidade econômica, sobre os impactos socioambientais e sobre alternativas de geração de energia.
Cada vez que entraram em cena violações à lei, ao meio ambiente e a comunidades tradicionais na Amazônia, foi preciso que o Ministério Público Federal (MPF) levasse os casos à Justiça. A ação civil pública contra a criativa expedição da “licença parcial” foi a décima ajuizada. Por dez vezes foi preciso avisar à Justiça e a toda a sociedade que o desrespeito à legislação é gritante. O rei está nu e só o governo não quer ver.
A primeira ação é de 2001. A Eletronorte tentou fazer o licenciamento do projeto por meio da Secretaria de Meio Ambiente do Pará. Em se tratando de um rio federal, e ainda por banhar terra indígena, seu licenciamento somente pode ser realizado pelo Ibama, nunca por um órgão estadual. O MPF conseguiu que essa irregularidade fosse interrompida.
Acatando pedido feito por procuradores da República na mesma ação, a Justiça também determinou que, ao contrário do que a Eletronorte fez, a empresa responsável pelos estudos de impactos ambientais não poderia ter sido contratada sem licitação.
O governo federal recorreu ao Tribunal Regional Federal em Brasília, e perdeu. Recorreu ao Supremo Tribunal Federal, e perdeu novamente. Na decisão, o ministro Marco Aurélio Mello decidiu que o licenciamento de Belo Monte, da forma que estava sendo realizado, contrariava a Constituição. É necessário autorização do Congresso Nacional e que sejam ouvidas por ele as comunidades indígenas.
Em 2005, o governo federal pediu o licenciamento do projeto junto ao Ibama, e o deputado federal Fernando Ferro, do PT, apresentou proposta de decreto legislativo que autorizava a obra. A proposta previa a oitiva das comunidades afetadas, mas nada disso aconteceu. Ao contrário, a proposta foi aprovada na Câmara e no Senado em tempo recorde: menos de 15 dias úteis. Um dos senadores o chamou de “projeto bala”. A falta da oitiva levou ao ajuizamento da segunda ação, que espera decisão a qualquer momento no Tribunal Regional Federal de Brasília.
A terceira foi encaminhada à Justiça em 2007. Os estudos de impactos ambientais começaram a ser feitos sem o termo de referência, conjunto de diretrizes que o Ibama estabelece sobre o que deve ser abordado nesse tipo de levantamento.
Em 2008, duas novas ações. A Eletrobras fez uma “parceria” com três das maiores empreiteiras do país — Camargo Corrêa, Norberto Odebrecht e Andrade Gutierrez — para a elaboração dos estudos. Trocando em miúdos, tem-se o seguinte: “parceria” significava contratação sem licitação, através de um “acordo de cooperação técnica”. Para quê? Para fazer consultoria ambiental. Por quem? Pelas empreiteiras. Mas essa é a área de atuação das empreiteiras? Fazer estudos ambientais?
Quanto à segunda ação, o motivo foi que essas empresas teriam acesso exclusivo às informações, saindo em vantagem em relação às concorrentes. Duas novas ações em 2009. A primeira do ano, e sexta relativa ao projeto, denunciava que estavam incompletos o Estudo de Impacto Ambiental de Belo Monte e seu Relatório (EIA/Rima) entregues ao Ibama pelas três empreiteiras, em associação com a Eletrobras.
A pressa em obter a licença ambiental era tão grande que alguns estudos fundamentais não tinham sido terminados, entre eles o espeleológico (das cavernas), o da qualidade de água, e as informações sobre as populações indígenas. O próprio Rima, que é um resumo do EIA com linguagem acessível, não havia sido apresentado a contento, segundo o Ibama.
No dia 20 de maio de 2009, analistas do Ibama concluíram que o documento precisava ser revisado para evitar os erros encontrados. Apesar dessa advertência, no mesmo dia o EIA/Rima de Belo Monte foi aceito pelo Ibama. Na prática, o aceite representava o início do prazo para que a sociedade analisasse o Eia/Rima, preparando-se para as audiências públicas. Com os estudos incompletos, como a comunidade, sobretudo a científica, iria analisá-los?
A segunda ação de 2009 denunciou a total falta de abrangência das audiências públicas. Apesar dos impactos de Belo Monte atingirem uma região vastíssima, foram marcadas audiências apenas em três municípios atingidos (Altamira, Brasil Novo, Vitória do Xingu). Também houve audiência em Belém, mas local foi mudado às vésperas do evento e não abrigou nem metade do público. O MPF e o MP do Pará pediram à Justiça que audiências sejam realizadas pelo menos nos 11 municípios afetados.
No final de 2009, a Casa Civil da Presidência da República entra em cena. Pressiona dirigentes do Ibama para a concessão da licença. Os técnicos dizem que não há tempo nem dados suficientes no projeto do governo. O diretor de licenciamento se exonera. Mesmo assim, o então presidente do Ibama, Roberto Messias, exige parecer conclusivo de seus subordinados. Em resposta, os técnicos afirmam que faltam dados sobre ictiologia, quelônios, cavidades naturais, qualidade da água e hidrossedimentologia.
Informação técnica em vão. Em 2010, o Ibama concede a licença, sem os dados. O MPF entra com nova ação judicial contra o governo, fundamentada em sete irregularidades. Entre elas, destaca-se a quantidade de água que será liberada no trecho de 100 quilômetros da Volta Grande do Xingu, por onde o rio não mais passará em virtude de um desvio. Trata-se de uma região onde habitam pelo menos 12 mil famílias e 372 espécies de peixes.
A Eletrobras propõe que a Volta Grande seja irrigada com apenas 4 mil metros cúbicos de água por segundo. O Ibama diz que deve ser o dobro e que, ainda assim, haverá o desaparecimento de várias espécies de peixes. Os peritos do MPF mostraram que pelo volume de água do Xingu, na série histórica de 1971 a 2006, as turbinas só geram energia se passarem por elas 14 mil m3/s de água. Somaram esse volume aos 8 mil m3/s propostos pelo Ibama. Chegaram a 22 mil m3/s. A conclusão é terrível. Nos 35 anos observados, em 70% do tempo o Xingu não foi capaz de atingir esse volume, nem nas épocas de maior cheia.
Aliás, o aproveitamento hídrico em terras indígenas nem sequer está regulamentado em lei. Só com essa regulamentação seria possível avaliar o projeto Belo Monte. Mais uma vez a Constituição desprezada, mais uma ação judicial, a segunda de 2010 e nona da série.
Mas o governo não parece satisfeito com a quantidade de irregularidades cometidas. No início de 2011, surge a tal “licença provisória” para o canteiro da obra. Qualquer tipo de licença só poderia ter sido dada se o empreendedor do projeto tivesse realizado uma série de ações de redução de impactos socioambientais, as chamadas condicionantes do projeto. Essa determinação foi estabelecida pelo Ibama. E descumprida pelo Ibama. Até a emissão da licença provisória, 29 condicionantes não tinham sido cumpridas, quatro foram realizadas apenas parcialmente e sobre as demais 33 não havia qualquer informação.
O 1º caso, do licenciamento ilegal pelo Estado e da 1ª contratação sem licitação, foi julgado a favor do MPF. Os demais aguardam decisão definitiva. Além de um posicionamento da Justiça sobre esses nove processos, resta saber até quando o governo encenará essa farsa. Até quando a sociedade fará abaixo-assinados sem ser ouvida? Até quando será preciso avisar que os danos às comunidades locais e a todo o país serão irreversíveis? Até quando será preciso alertar que há mais de dez anos o rei está nu, entorpecido pela sensação de que as leis não valem para ele?
* Felício Pontes Jr. é procurador da República no Pará e mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio.
O interessante é que quem critica o senhor não se identifica. E ainda chama de "senhor". Mas parece que isso é uma prática corrente aqui no Brasil (digo como historiador). Venho acompanhando e divulgando seu blog há pouco tempo. Só faço um pedido: independente das dificuldade, prossiga. Mas uma dúvida: de que forma exatamente a Norte Energia se colocou nessa empreitada? Ela é uma renião das empresas citadas acima? Ou é alguma outra que se utiliza os "estudos" feitos por elas?
ResponderExcluir(Obs.: se puder, responda no meu email: dalcolletto@gmail.com)
O caríssimo "Diogo de Marabá" ou "não te interessa" acredita mesmo que a UHE de Belo Monte vai beneficiar as populações dos estados do norte do país? Meu caro, toda essa parafernália ao redor dessa obra nefasta nada mais é para "exportar" energia para o sul do país.
ResponderExcluirNão seja ignorante e procure se informar mais sobre o assunto. Vá estudar a matéria antes de escrever asneiras na internet.
Santa ignorância!!! Como disse Jesus na cruz: "Pai, perdoa-os, eles não sabem o que fazem"
Que Deus tenha piedade de sua pobre alma ignorante "Sr. Não te interessa" (Diogo de Marabá)